Blog sobre ilustrações e pinturas de Flávio Grão, com reflexões e notas sobre os meios de produção e motivações dos trabalhos.
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
ENTREVISTA SITE VISTA
O fanzine MANUFATURA recebeu uma resenha na Revista VISTA # 28.
Nesta resenha havia a citação de uma entrevista comigo no site da revista, que acabou não sendo publicada por alguns desencontros e questões de tempo e espaço.
No mês passado, porém, o equívoco foi desfeito e a entrevista foi publicada no site da VISTA.
Feita pelo fanzineiro/jornalista Ricardo Tibiu do blog Chiveta, segue abaixo reproduzida. Agradecimentos ao Tibiu pelo apoio de sempre!
Quando muita gente dava por encerrada a circulação de fanzines por aí, “culpa” da tal da internet, as folhas de papel têm voltado a “voar” por aí em envelopes. Elas cruzam o país, quiçá outras fronteiras, e encontram pessoas interessadas em absorver seu conteúdo – geralmente algo feito “à mão”. “Manufatura” é assim. Feito pelo veterano Flávio Grão ele tem uma tiragem limitada, mas que pode adentrar na “vilã” internet para chegar a um número infindável de pessoas. Esse e outros assuntos foram abordados na nossa conversa com o autor Grão, mestre na arte de produzir zines e cultura independente nos mais variados formatos. Confira a entrevista!
Qual foi o estalo que você teve que te levou a voltar a fazer um fanzine depois de 10 anos “parado”?
Grão: Nestes 10 anos de hiato fiquei me deslumbrando com a internet (risos). Brincadeira! No final dos anos 90 parei de fazer fanzines porque após publicar nove zines de contos – “Histórias Para Ler no Banheiro” e “333” – fiquei meio saturado de escrever e também porque saí do trabalho onde xerocava tais produções. Passei então a década dos “00” pintando, tocando e colocando alguns desenhos na internet.
Aí veio a volta...
Grão: Voltei a fazer fanzine no final do ano passado depois de uma crise – no bom sentido. Essa crise surgiu quando comecei a pensar criticamente no tempo que me dedicava para pintar os quadros (meses) e no destino deles, que geralmente iam parar na parede, da minha ou de outra casa, para serem vistos por um número mínimo de pessoas. A grande motivação para que eu faça arte é o prazer que há nesta atividade, mas tão importante quanto isso é a necessidade – como artista – de que esta produção circule e que pessoas a vejam; senão é como aquela banda que só ensaia e nunca faz show ou grava. Vira uma produção autista – um ato de comunicação não finalizado. Mediante estas reflexões comecei a produzir ilustrações em preto e branco porque transmitiam minhas idéias de modo mais rápido, ocupam menos espaço e são mais fáceis de serem reproduzidas. Os desenhos desta época começaram a gerar outros desenhos e formaram sequências. Foi aí que deu o tal estalo e decidi fazer o fanzine “Manufatura”, pois seria um modo de oferecer tais sequências em um formato legal, relativamente barato e sem depender de ninguém.
Eu tenho uma teoria de que só quem já fez fanzine sabe dar o devido valor a este muitas vezes subestimado veículo de informação. Será que é ranzinza demais eu pensar assim?
Grão: Sim, pode apostar que nós somos ranzinzas sim (risos). Essa subestimação vem da ignorância do senso comum que possui um ponto de vista equivocado que considera o fanzine como uma “sub-revista” ou uma “revista amadora” e não o reconhece como gênero autêntico e dotado de suas próprias características. Quase todos os fanzineiros que conheço hoje fazem fanzine por uma opção consciente. E isto quer dizer que eles desejam emitir suas opiniões sem rabo preso, circular em um número restrito e – quase sempre – seleto de leitores e, principalmente, publicar por prazer.
O “Manufatura” é um fanzine, praticamente, sem palavras. O chavão diz que uma imagem vale mais que mil palavras, será que sem a escrita, a arte visual estimula mais o pensamento livre?
Grão: Eu acredito que a palavra é um elemento a mais que pode ajudar a direcionar certas interpretações. E minha escolha pela ausência delas é justamente para que haja essa lacuna para o leitor colocar seu pensamento, sua própria interpretação.
Ainda pensando nisso de não haver textos no fanzine, fiquei imaginando uma “trilha sonora” pra ele e só cheguei a conclusão que deveria ser algo instrumental. O quê você acha que combinaria com seus desenhos?
Grão: Eu também imaginei algo instrumental. Se pudesse escolher seria algo entre o Tortoise e as músicas instrumentais do Fugazi.
Por usar o papel vergé, que tem pequenas ranhuras, você deu aos seus desenhos do “Manufatura” um “movimento”. As linhas parecem “frescas”, que foram feitas há pouco, sabe?! Todo esse processo, unido ao modo artesanal como foi composto, me convence de que na tela fria de um computador ou se feito em grande escala, sua arte perderia um pouco sua vida. Você concorda com isso?
Grão: Sim, concordo, mas caímos naquele velho parodoxo da qualidade X quantidade. Se por um lado a imagem na internet é mais “pobre”, por outro é mais democrática e mais pessoas podem ter acesso a ela. Futuramente vou disponibilizar o “Manufatura” para ser folheado online, pois não gostaria que a baixa tiragem impedisse o acesso a alguém que quisesse ler.
O “Manufatura” está em sua primeira edição, ela é limitada em uma tiragem de cem fanzines. Essa opção foi mais pensando no lado econômico, financeiramente falando, ou para valorizar o resultado final mesmo? E quando vem o próximo número?Grão: Pensei sim no lado econômico, mas também pensei no resultado final, já que poderia produzir uma quantidade maior com uma qualidade pior. Quando pensei na tiragem de 100 pretendi limitar o alcance que o zine teria em termos de distribuição, divulgação etc. Tem também o lance de quando alguém pegar em mãos entender que é um produto de tiragem baixa, limitada, coisa que nem todo mundo pensa quando pega um fanzine, mas que acontece com quem compra uma gravura.
Mesmo me considerando uma pessoa frustrada no skate, olhar para algumas escadas dos seus desenhos parecem ser convites para descê-las num rockslide...
Enfim, o skate te influencia de alguma maneira na hora de desenhar?
Grão: Andei de skate na época mais “wild on the streets” e tinha a pista de SBC como quintal de casa. Também sou meio frustrado como skatista, nunca andei muito bem... É interessante notar que quem já andou de skate tem no subconsciente esse lance, essa forma particular e poética de se relacionar com as estruturas da cidade. E como tenho esses pensamentos enquanto desenho não dá pra negar que há uma influência, né?!
E no geral, quem e o quê te influenciam artisticamente?
Grão: Tenho uma influência muito ampla, gosto de muitos artistas e por motivos diferentes, como tipos de traço, motivos, cores. Esta influência, porém, não se restringe às artes gráficas. Toda a cultura do hardcore, por exemplo, sempre me influenciou muito. Ultimamente tenho estudado um pouco de Filosofia Chinesa e acho que isso também tem pegado forte no meu desenho. Também tem a influência do ambiente em que vivo, no caso o caos concreto de São Paulo.
Cara, acho impossível folhear o “Manufatura” e não pensar nos traços do holandês M. C. Escher, apesar de achar que ele desafiava mais a gravidade que você. Pelo que sei você só foi conhecer o trabalho dele depois de comentarem a semelhança, né?! Você acredita que esse é um simples caso de coincidência ou, tal qual Jung teorizou, de sincronicidade?
Grão: Acredito na sincronicidade sim. Como sempre gostei de desenhar escadas e tinha esse interesse em subverter as perspectivas, uma hora ou outra eu ia flertar com o universo do Escher, mesmo sem o conhecer. Admiro muito o seu trabalho, pois ele alia três habilidades em alto grau: o rigor matemático, a técnica precisa e uma inspiração que transcende a lógica.
As pessoas adoram rótulos, termos, definições... Se uma arte está num determinado museu ela é considerada clássica, se em outro ela é chamada de contemporânea. Se tá num muro, street art, num vitrine à venda, comercial... Complicado, né? A arte de Flávio Grão seria melhor definida como?
Grão: Eu defino como uma arte arcaica e rude (risos). Brincadeiras a parte não fico preocupado em me encaixar ou definir em nenhuma dessas classificações. Desenhar sempre foi um modo de entender o mundo e de me relacionar com ele. Isso é o que mais importa. O rótulo na verdade mais limita do que qualquer outra coisa. Reconheço, porém, algumas características comuns aos meus desenhos que são marcantes ao ponto de enquadrá-los em um estilo próprio, entre elas posso citar a “subversão” das formas, algo de autobiográfico – dizem que sempre desenho a mim mesmo –, o traço forte e marcado e à forte presença de texturas enervadas, que lembram a madeira.
Você fez algumas capas de discos e arte para bandas. Quando você faz esse tipo de trabalho, você se guia levando mais em conta a sonoridade ou as letras?
Grão: Ambas, contudo, na maioria das vezes, os músicos já têm uma ideia mais ou menos pré-determinada do que querem, e acabo dando um toque meu. O mais legal é quando me deixam a vontade e rola algo que satisfaz as duas partes, o CD “Faces do Terceiro Mundo” foi assim, e foi um CD cuja arte muita gente elogiou.
E seu lado músico, como anda? Você já tocou em diversas bandas desde lá dos anos 90, não?
Grão: Sim. Sinceramente sou um péssimo guitarrista e só tive bandas porque contava com a paciência de alguns generosos amigos que me deixavam tocar nas bandas que formavam (risos). Mas como estes amigos estão no ABC Paulista e estou morando em São Paulo é uma coisa que no momento tornou-se inviável.
Como artista, qual foi o trabalho que mais te deixou satisfeito – ou orgulhoso – em termos de reconhecimento?
Grão: É difícil de escolher um só, o já citado “Faces do Terceiro Mundo” foi um deles, teve também um linha de Shapes que fiz no começo dos anos 90 que gostei muito de fazer e, mais recentemente, o vídeo “Tinta Incrível”.
A linha de shapes foi feita pra quem?
Grão: Para a SIMS, entre os atletas me lembro que estavam o Fabio Sleiman, Rafael Gomes, Rafael Cabral, Negretti, etc. Foi um total de oito shapes.
E o “Tinta Incrível”?
Grão: Foi feito com filmagem de Vebis Jr., montagem de Rafael Armbrust e trilha do Parteum!
Pra encerrar, quando se fala em fanzine a gente sempre fica meio nostálgico. Então te pergunto, você acha que ainda exista algo sincero e/ou espontâneo no “do it yourself” nos dias de hoje?
Grão: Acredito que sim. A maioria das produções no underground começa com todas estas características positivas. Só que elas vão apodrecendo na medida em que o ego dos artistas cresce e toma um lugar central na história o que é um passo para que surja esse câncer que são as castas ou panelas dentro do próprio underground. Tudo isso é uma contradição, visto que agindo desta forma se reproduz os mesmos mecanismos de exclusão existentes no mainstream aos quais o underground deveria ser justamente uma alternativa! É bem triste porque a cidade de São Paulo que deveria ser uma Meca cultural alternativa acabou se tornando uma cidade dividida em sub-cenas arrogantes e impenetráveis. Diferente de outros lugares em que o underground luta por uma causa comum, aqui a cena briga entre si, arruinando a sua própria essência. Mas temos de ser esperançosos porque temos muitos exemplos de pessoas que não se corromperam – e nem se corromperão – com falsas ilusões e deslumbramento, produzindo algo visceral e honesto.
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